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terça-feira, agosto 17, 2004

Repetições

Tinha-me esquecido...E fui encontrá-los, já moribundos, amarrotados. Decidi recuperá-los. Republicá-los. Perdoem-me a repetição...Mas apetece-me revivê-los uma vez mais...

Um Quarto em Amsterdão

Lá do alto da torre iluminada podia-se ver a cidade inteira. Mal iluminada. Lembrava a escuridão da solidão. Nem sabia se o frio vinha de dentro ou do vento. Tinha a certeza de que não viria e, no entanto ali estava à espera. Mas quem espera uma vida inteira, habitua-se e já não sabe a diferença. Achava que não viria. A conversa não tinha sido precisa, podia ser que viesse. Não sintas nunca o arrependimento de te dares, porque é de liberdade que a felicidade é feita, disseste. Afinal, vir não foi ideia minha. Arrisquei tudo para estar aqui. Tudo o quê? Não sei... Quando não se quer ver, finge-se a ignorância. Podia arruinar tudo o que construi. Mas ignorei e vim. Estava ali. Mas, talvez não tivesse importância porque talvez não viesse. Afinal, agora que a noite fazia as horas passarem mais rápido, tinha a certeza de que ele não viria. Mas continuava à espera. Porquê? A rejeição não é uma coisa simples de se viver. A solidão magoa.
Na cidade mal iluminada o trânsito abrandava ao som dos semáforos, obediente. Pensou naquele telefonema, nas palavras indecisas. Nos silêncios deixados no ar. Houve um tempo em que pensei que a escassez de palavras fosse apenas timidez. Mas talvez fosse só indecisão, contrariedade. Nunca o obriguei a nada! Mas insisti. E apesar disso podia não ter aceite! E no entanto, havia sempre um telefonema, uma visita rápida, um beijo fugaz. Um carinho a saber a promessa de mais. Faz sentido deixar voar, também eu estou cá todo, disseste-me um dia.
Achava que não viria. E estava cansada de ali estar. A cidade não lhe agradava. Teria preferido outra qualquer. Talvez um lugar mais pequeno, com ruas estreitas de casas antigas. Que cheirassem a conforto. Aí, a luz escassa saberia a mistério e não a solidão.
Olhou para as horas e pensou que o tempo custava a passar. É sempre assim. O tempo move-se de forma estranha. Quase como se fosse autónomo da vida. Alguns segundos bastavam para poder passear durante horas pelos caminhos do pensamento. E recordar os últimos anos. Passear pela memória dos últimos encontros. Nesses passeios, ficava com a impressão de que o tempo não era importante. Pareciam horas os minutos em que se viam.
O tempo é feito por cada um de nós. E nós, juntos, fazemos uma vida inteira de horas, momentos, sensações, dizias. Como se vivêssemos numa dimensão diferente. Mas estava a ficar frio e isso, deixava-me impaciente. Talvez não viesse. Bem sei que era uma possibilidade. Mas ficaria até ao fim. Até não haver mais nenhuma esperança. Mas iria esperar. E talvez, ainda viesse. Com uma desculpa qualquer para o atraso e outra para sair rapidamente. E eu desculparia. E tentaria não pensar nas horas e ficaria feliz. E quando me deixasse, ficaria apenas com saudades. E, se não viesse? Claro que viria. A ideia não foi minha. Senão, teria escolhido outra cidade. Não gostava de cidades grandes, de prédios altos. Com multidões que não se olham nos olhos. Que não se sorriem. Creio que nem são felizes.
Mas, e se não viesse? Começava a ficar angustiada. Tinha tido a certeza de que viria, mas agora, já não sabia. A promessa de umas horas felizes começava a desvanecer-se. Senti-me impaciente. Aquela angústia de sempre começou a apertar-me a garganta. Mais um pouco, e sabia que começaria a duvidar de tudo. De todas as certezas. Se calhar, nunca fez intenção de vir. Se calhar, estava agora a jantar ou no conforto de um sofá. E não estaria sozinho. Como eu.
Não posso continuar nesta tristeza, sem saber o que fazer. Penso repetidamente em não te ver nunca mais. Em deixar morrer de esquecimento o teu rosto. Mas, a tristeza assalta-me e acabo por recorrer a ti, aos nossos diálogos surdos, em que eu falo e nem sei se tu ouves...Tenho um certo embaraço em te dizer de facto o que me faz ficar triste. Mas, confio sempre na tua capacidade de ler além do que digo, e nas perguntas que não me vais fazer. Se a vida fosse mais simples, não teria de pensar! Também não teria em que pensar! Talvez nem tivesse de te ver! Se calhar, estarias perto...
Penso em te dar asas e deixar-te voar de dentro de mim. Mas não estou certa. Não sei se devo deixar que me roubem de novo. E, depois, aprendi a ter medo de me dar. E seria capaz de te amar outra vez. Penso como seria acordar contigo. Olhar-te por entre a penumbra e dizer-te Bom dia para ti!
Bom dia de saudade. Não estou perto e isso não me faz sorrir, agora. Não te posso sussurrar... Mas, fecho os olhos e sinto ainda o perfume do teu corpo. Como se lhe pudesse ainda tocar. Como se me pudesse ainda tocar. Sinto ainda o calor das palavras de outros tempos. E tenho saudades de te olhar nos olhos. Não estou, seguramente, no Reino da Dinamarca. Mas guardo a memória dele. E, por vezes, julgo mesmo que passo por lá perto. Porque continuo a sonhar. Ás vezes, com dificuldade. mas, sou teimosa com a vida e insisto! Hoje, a memória das tuas palavras não me faz sorrir. Deixa lágrimas escorrer...Mas, insisto, sou teimosa com a vida. Seco-as e respiro fundo. Com a mesma vontade de sempre. Não te tenho e, no entanto, permaneces em mim. Não te terei e ainda assim, não te expulso. Sei que a vida é assim. Os nossos caminhos cruzam-se e apenas se tocam por breves momentos. Doces momentos. Doce memória.
Lá fora, o trânsito continua, indiferente à solidão.



Não vieste. E eu dormi sozinha naquela cama fria. Não sei quantos minutos, ou talvez horas, estive ali, parada a olhar a cidade. Como se por entre os carros que passam, pudesse ver um aceno teu. Mas tu não vieste. E fiquei ali, parada a olhar para o mundo. Choveu, parece-me. Não sei bem. Deixei-me ficar. Sem forças para me zangar, para gritar. Deixei só as lágrimas caírem. Transbordarem do meu corpo. Inundarem tudo.
Não vieste. E eu dormi enrolada no meu corpo. Agarrada à minha dor. E acordei cansada, de corpo dorido. Com os movimentos presos, como se me tivesses acorrentado.
Não sei que horas são. Não sei se já é dia. Não sei o que pensar. Criaste um vazio em mim. Deixaste-me suspensa nas palavras. E deixaste-me cair. E sinto-me como se fosse ainda em queda. O meu corpo ainda não tocou no chão. Mas afunda-se já na escuridão da solidão. Não sei o que faça. Já não consigo chorar mais.
Lá fora, a vida continua. Uma multidão que vai e vem, apressada. E eu aqui. Longe do mundo. Suspensa no tempo. Desfeita. E se fosse mentira? E se tudo fosse uma mentira imperdoável? Não sei...Ainda não sei. Não consigo pensar. Queres-me, não me queres? Como é possível desejares-me não me querendo? E eu quero odiar-te. Mas desejo-te ainda. Sinto vontade de te tocar. De te abraçar. E respirar o teu corpo. Olhar fundo nos teus olhos e mergulhar em ti. Como se o mundo não existisse para além de nós. Queria poder abraçar-te. Apertar-te e sentir o teu corpo. Sentir-te. A tua boca, as tuas mãos pelo meu corpo. Poder ser tua. Nua. E ter-te também.
Desperta-me o ruído da cidade. A vida continua lá fora. Tenho saudade das vezes em que acordávamos assim, de corpos enrolados, extenuados. E cheios de vida. Com vontade de respirar o sol da manhã. De comer gelados ao pequeno almoço.
Sinto vontade de sair e percorrer os caminhos que fazíamos juntos. Tentar encontrar os risos que perdemos por aí. De me encontrar.



Sinto-me atordoada com as pessoas que passam por mim. Falam, riem, caminham depressa. E eu sinto-me como se vagueasse numa outra dimensão por entre elas. Sinto-me tonta. Sem forças. Olho para a água turva do canal. E vejo-me reflectida, mal definida. Como um fantasma. Não me quis apaixonar por ti. Aconteceu. Sem te conhecer ainda. Como se estivéssemos estado juntos numa outra vida. Como se no silêncio estivesse já tudo escrito. Recordo o primeiro olhar. Intenso. Paralisante. Profundo. E o meu corpo pediu-te logo ali. Reconheci-te no olhar. Soube que eras tu. Soube que te tinha encontrado. E percebi a maldição. E fugi dos teus olhos, querendo-os. Sempre que o teu olhar pousava em mim, sentia-o. Pesado. Como uma força bruta que me obrigava a encarar-te. Quente. Sabia sempre que me fitavas. Porque o teu olhar me abraçava. E me embalava. Como se me desejasse, ali. Dizendo-me não conheço ainda a cor dos teus olhos...Importaste de olhar para mim! Não fujas. Vou pousar os meus olhos em ti, suavemente. Deixa-me ver a cor dos teus olhos! Olhar-te com a impaciência do meu corpo. Mergulhar vezes sem conta nesses olhos que enganam e te escondem. Sabes que a vida é inevitável? Claro que sei... Não fui eu quem te descobri. Mas fui de descoberta em descoberta. Querendo mais e mais. Com vontade de respirar tudo de uma só vez. Com medo que não me olhasses. E não descobrisse, eu também, a cor do teu olhar. Mas tu, insistias. Deixa-me olhar para ti até saber de que é feito o teu olhar. Tocar devagarinho. E gravar-te na ponta dos meus dedos. Até saber esculpir-te. E dar-te cor. Mas agora, olhando a água do canal não te revejo na memória do meu desejo. Não vieste. E procuro-te por entre os caminhos que percorremos. Entre os jardins que florescemos. Mas não te encontro. E tenho frio. E apetece-me voltar para o quarto onde a tristeza se confina às paredes. E não se espalha pelo mundo.





Olho-te por entre a penumbra. Tens um rosto sereno. Como se dormisses pela primeira vez. Eu descanso o meu olhar em ti. Tenho ainda o sabor do despertar lento nos teus braços. Dos beijos meigos e cautelosos do meu sono. O teu corpo junto ao meu, quente. Acho que vivo do calor dos momentos que me dás. Gosto de estar assim. Olhando-te. Respirando o teu sono. Gostava de eternizar este momento. De apagar da memória as horas de solidão. As horas em que espero por ti. Queria guardar-te na memória das horas felizes. Dos momentos de paixão. Cheiro o teu corpo. Como se pudesse gravar para sempre o teu perfume em mim. Doce perfume. Das tuas mãos surgi outra. De tanto te querer, entreguei-me. E amanheci nova. Expurgada. Nas lágrimas de prazer, lavaste-me a dor da alma.
Quando regressei da procura dos teus sorrisos pelos recantos desta cidade de que não gosto, encontrei-te sereno. Com a certeza de que eu voltaria. Apetece-me falar-te dos "sítios desconhecidos" que reencontrei no teu corpo. Dos sítios conhecidos que a memória se recusa a lembrar e que me obriga a procurar. Que excitam. Que apetecem. Das mais desvairadas maneiras. Das múltiplas tonalidades e sabores dos momentos e do teu corpo. Também gosto de ti...Embora me queira parecer que de uma forma diferente...Mas não quis pensar. Lentamente, fui-me deixando levar pelos espaços soltos da memória. Fui saboreando as palavras ditas. Sonhadas. Lentamente, fui escorregando pelas imagens perdidas, guardadas. Lentamente...Deixei-me invadir pelo perfume quente das palavras. Pousei as tuas mãos em mim. E fui-me abandonando. Despindo-me para ti.

Como se tudo fosse infinito
E o tempo nos abraçasse
Num longo suspiro...
Como se a vida fosse poesia
E bastasse sentir...
Bastasse amar para sermos
Sempre...

Como se tudo fosse infinito
E aquela vista sobre a cidade
Fosse, nos nossos olhos,
A magia de uma história
Que ficou impregnada nas paredes
Dos corações, sempre...

Como se tudo fosse infinito
E nas nossas mãos permanecesse
Intocável, o desejo, o corpo e a alma
O prazer infinito do perfume,
Inexplicável, da liberdade
De amar, sempre...

Como se tudo fosse infinito
Sempre...




Conheci as tuas razões, antes. Sempre soube que tudo seria, inevitavelmente, fugaz. E, que no fim, ficarias onde sempre estiveste. Olho-te, nesse teu sono sereno e sinto falta de falar contigo. Preciso de redescobrir o meu espaço novamente. Reinventar a minha vida e voltar a descobrir como se sorri de vontade. Respiro a tua memória e guardo-te dentro de mim. Como se nos voltássemos a amar com lentidão. E o prazer fosse denso como o ar que se respira... Ás vezes penso que um dia, vou acordar vazia. Sem me mexer e não vou sentir o perfume dos meus sonhos. Depois, quando caminhar até à janela, vou olhar o céu azul e pensar que está gasto. De tantas vezes amanhecer assim. esta cama não será mais o lugar mágico, onde tantas vezes te amei. Vou pensar em ti. E perceber que não tenho mais nada dentro de mim. Que entre tanto te querer dar, perdi tudo. E depois, vou ficar imóvel. Sem respirar. Vou fechar os olhos e deixar-me vaguear pela escuridão. Até me encontrar. E aí, respirarei. Mas agora, posso ver os teus olhos ainda adormecidos, sorrindo. E sorrio para ti também. Hoje, vou dormir com o teu cheiro enrolado no meu corpo. Como se o meu sono estivesse, ainda, abraçado em ti. E pudesse, de novo, acordar com o teu sorriso na minha boca.




Tento, vezes sem conta escrever esta mensagem, com palavras diferentes. Contar-te como me sinto, descrever-te as imagens do meu pensamento. Mas vejo-te, repousado, adormecido e acabo sempre por regressar à mesma memória. Não. Apago tudo e recomeço uma vez mais. "Não ouvir, não falar, não ver". Assim me sinto. E uma vez mais, não!! Não flutuo, hoje. Caminho em passo lento, de cabeça levantada e olhar fixo lá em frente. E tudo à minha volta é deserto. E posso mesmo ouvir a voz do silêncio. Deixar-me acariciar pelo vento. Sabes que tudo é um eterno retorno. Tudo o que dei, vou receber pela vida fora. Acredito nisso. E, por isso, te pergunto, por onde anda o meu retorno? Que vento o desviou do meu caminho? Desafio quem disser que não serei, um dia, feliz! Entretanto, silêncio....Entretanto, não ouço, não vejo, não falo. Não mergulho na vida. Não te digo como me sinto. Não, uma vez mais. Bem sei que não percebes. Não é para perceber. Há coisas que não se explicam. Há coisas que não tem sentido. Não compliques. São só palavras soltas e alguns espaços em branco pelo meio. São coisas que se sentem. Um dia, nascerei mais lúcida. E aí, prometo que te explicarei. Sabes, às vezes releio as memórias que mantenho perdidas, desordenadas na minha gaveta do esquecimento. E tenho vontade de me deixar vaguear pelas palavras escritas, pelos sentimentos guardados. É talvez saudade o que me leva a reviver momentos para sempre afastados. Saudades do que vivi, vontade de não esquecer os sorrisos que ofereci, as lágrimas que chorei. Não esquecer. Construir e reconstruir todo o pensamento. Como se a memória me pudesse ajudar ser feliz. Não, não duvido que serei feliz! Mas serei...? És tu feliz? Os caminhos da vida levam-nos a sítios desconhecidos. Nunca saberemos se este é o melhor. Resta-nos o pensamento. Construído e desconstruído. Deixo-te embalado nesse sono sereno. Até sempre.


Por acaso...

O empregado continuava a olhar impávido para mim. Tinha de decidir rapidamente.
- Um café ou talvez água. Não, espere!
Ficar aqui, sentado na esplanada a beber um café ou água, faz-me lembrar os tristes. Aqueles que esperam e desesperam por alguém. E ali ficam, desconfortáveis com os olhares. Com a certeza de que todos sabem que foram esquecidos. E nesse instante, esboroa-se toda a importância do ser, porque afinal, quem é importante não espera por ninguém! O ar de enfado do empregado começa a irritar-me.
- Não sei o que vou tomar, digo-lhe depois.
E fico a vê-lo a afastar-se, indiferente. O meu corpo rendeu-se ao calor e transborda. Fico desconfortável, não queria que me visse assim...O empregado olha para mim, de longe. Tenho mesmo que decidir o que tomar. Talvez assim me livre daqueles olhos vazios. Talvez um Gin. Sim, um Gin Tónico! Parecia mal? Acho que não... No calor deste fim de tarde ia beber um Gin e escaparia à imagem dos tristes. Passaria a ser um daqueles que se delicia no descanso. Daqueles que apreciam a vida e os seus prazeres.
- Um Gin Tónico, por favor!
Olho em volta e claro que ninguém reparou em mim. O calor animou as conversas e tornou os corpos indulgentes. Ninguém reparou que continuo à espera. E com um pouco de ansiedade, confesso. Mas tenho vontade de a ver de novo! Nunca imaginei voltar a vê-la e por isso o acaso apanhou-me desprevenido. E fiquei, penso, com ar de adolescente.
Como me encantou a luz dos seus olhos! Acho que estava bonita, mas não sei bem o que mudou nestes 10 anos. Sei que os seus olhos brilham de intensidade. Não sei, não me lembro como é o seu cabelo, que transformações sofreram com o passar dos anos. Não sei se o seu corpo amadureceu. Só fui capaz de a olhar nos olhos. E a sua luz ofuscou tudo o mais. E dei comigo a querer voltar a vê-la.
- Amanhã, às cinco. Na esplanada, lembras-te?
- Na esplanada?... Claro que me lembro! Lá estarei!
Mas já não me lembrava. E passei a noite a calcorrear os caminhos da minha memória em busca de uma esplanada. Não uma esplanada qualquer, mas daquela esplanada!
E agora que cá estou, lembro-me de muito mais. Lembro-me que chegar a horas nunca foi o seu forte. E agora, à distância, rio-me das minhas brigas pelas demoras! É talvez o efeito do Gin. Rio-me agora, mas antes, irritava-me!
Demorava-se sempre a entrar na sala. Parecia até ser de propósito. Hesitava, demorava-se a remexer em papéis, a terminar uma qualquer conversa inútil, para depois entrar triunfante. De sorriso rasgado. Desafiante. Irritava-me ter de parar para o olhar. Talvez pensasse que só assim repararia nela. E talvez fosse verdade. Mas não a única verdade.
Mais do que os seus atrasos, irritava-me a capacidade de fazer de mim seu espectador privilegiado. De transformar a sua entrada na sala num acto cénico. Irritava-me ter de assistir à sua chegada. E de por isso, ter de visionar os olhares que lhe deitavam. A excitação que produzia.
Sentia-me quase sempre como uma presa. Uma presa do meu próprio fascínio. Sem poder intervir activamente.
De a ter como meu objecto de desejo, passei a ser o seu objecto. Não sei se de desejo também. Não sei, porque os seus olhos guiavam as palavras para outros caminhos. E não era por esses caminhos que tinha vontade de passear.
Conversávamos apenas, durante horas intermináveis. Sobre tudo e mais qualquer coisa. E às vezes, sentia-me enfadado com o rumo das conversas. Porque não queria falar dos outros. Queria que me falasse de si. Queria saber como era aquela rapariga que me excitava, que me povoava o sono. E sentia-me mesquinho. Quase nojento. De querer tirar-lhe emoções que não parecia querer dar-me.
Ao pensar agora nisso, o Gin pareceu-me um pouco mais amargo. E senti-me levemente enjoado. Como seria ela agora? Despertaria o seu corpo, agora talvez mais maduro, a mesma excitação? Senti-me indefeso. Distraio-me a olhar em volta. Reparo nuns jovens, numa mesa lá ao fundo da esplanada. Sorriem. Olham-se muito. Estão de mãos entrelaçadas. Olham-se com ternura. Estão, talvez apaixonados. E não pretendem esconder isso de ninguém. Os seus silêncios apenas escondem as palavras, porventura ternas, que trocam. Deve ser bom poder falar assim, em silêncio. Olhos nos olhos, de mãos entrelaçadas. Que palavras dirão um ao outro? Que carinhos trocarão nestes momentos de silêncio?
- Deixei-te à espera outra vez! – Diz-me sorrindo.
- Já me vou habituando! – Mas não, não me habituo de não a ter comigo a horas certas. Mas já não me zango. Não quero desperdiçar nenhum minuto com zangas. Quero estar com ela. Tenho tantas coisas para saber...Tantas que gostava de lhe perguntar...



- Continuas a dar as mesmas aulas, o mesmo programa.
Que raio! Que mal tinha o meu programa? Que lhe interessava o que eu ensinava ou não, contando que alguém aprendesse? Mas não ia responder à provocação.
- Bem, não é bem o mesmo. Tive de acrescentar algumas coisas...Sabes que a história não parou nesta década!
- Ah! Bom! Mas não era da História que falava! – Acrescentou rindo-se.
Não percebo...Acho que está a rir-se de mim... Queria responder-lhe, falar-lhe com altivez, como se a minha sabedoria fosse melhor que a sua. Mas não consegui. Fiquei preso naquele sorriso. O seu riso ficou a ecoar dentro de mim. E deixou-me meio tonto.
- Estava a falar de ti! – Continuou, sorrindo. E nada mais foi capaz de dizer. Fiquei só a olhar, questionando.
- Continuas a ser o professor mais charmoso? Vá diz-me a verdade, houve alguém que te destronasse alguma vez?
Corei. Acho que corei como nunca tinha corado.
Não fica bem um homem corar. Acho que diminui a imagem de si perante os outros. Quase como se, pelo simples facto de o meu corpo me trair as emoções, me tornasse indefeso. Vulnerável às suas palavras. E fiquei à espera de ser de novo atacado, mordido. Mas não. Apenas sorriu. Como se não tivesse reparado. Se calhar, não reparou mesmo. E fiquei irritado. Não sei se por ter corado, se por ter sido ignorado. Mas já não interessa. Porque continua sorrindo, fixamente para mim. E apenas isso, agora, me prende a atenção.



Não entendo....O que via ela em mim? Porque me olhava assim?
Perdi já horas a olhar-me no espelho, procurando algo que me fizesse especial, diferente, talvez até atraente. Mas não. Nada. Sempre o mesmo corpo, desajeitado, rendendo-se à gravidade e ao tempo. Nada que pudesse atrair. Por isso, às vezes julgava que ela se divertia comigo. Porquê eu? Que tinha de especial? Nada. Nem tão pouco me achava charmoso, como ela me chamara.
Ela, pelo contrário, não sucumbira ao tempo. Não, o tempo fizera-lhe bem. Sentia-se que tinha amadurecido. Como um vinho que se revelou encorpado e macio, mas levemente adstringente. Exibia segurança, serenidade. E isso tornava-a ainda mais excitante. Meu deus! Esta mulher desperta-me do torpor! A sua essência entra-me pelos poros! Entranha-se em mim!




- Pede um Gin para mim. – Pediu quase em sussurro. E eu pedi. Obediente. Transpirava por todos os lados. Sentia-me pegajoso e desconfortável dentro da roupa. Ela, pelo contrário, parecia fresca, resplandecente. Estava linda! Decerto, fizera já praia. Estava bem morena. Com um decote sugestivo. Excitante. Tenho vontade de a agarrar, de lhe calar as palavras com um beijo. Mas não tenho coragem. Só desejo. Nunca a beijei. Não sei a que sabe a sua boca. Mas imagino que saiba a paixão. Os meus, talvez saibam a sofreguidão. Porque é assim que me sinto. Sôfrego. Sedento.
Peço mais um Gin, para mim também, enquanto ela fala trivialidades. É até estranho que fale assim, coisas sem interesse. É uma mulher inteligente. Interessante. E, ainda assim, passa horas a falar de coisas que não me interessam. Coisas que não desejo ouvir. É como se soubesse. Mas me quisesse exasperar, sugar toda a minha paciência. Se calhar, é isso mesmo. Quer ver até onde me aguento. Mas eu vou aguentar sempre. Para sempre.



- Hesitei muito em vir para cá, sabes?
- Vais dar-te bem cá, vais ver... – Na verdade, gostava de lhe ter perguntado porquê. Não sei porque voltou. Não sei ao que veio. E escapa-me a coragem de lhe perguntar.
- Tinha saudades deste mar! Já reparaste como está bonito?
Estava bonito, sim. Mas ainda não tinha reparado. Todos os meus sentidos se perdiam a pensar nela, no seu corpo, na sua vinda. No seu sorriso.
- Tive algum receio em voltar... – E ao dizer isto, deixou os olhos perderem-se ao longe.
- Mas voltaste... – arrisquei. Talvez agora me dissesse. Sem ter de lhe perguntar.
- Voltei, mas ainda não sei se fiz bem.
- Ainda bem que vieste...
- Gostas de me ter por cá? – Olhava agora fixamente para mim. Sem sorrir. De expressão séria. Como se esperasse algo de mim. Mas não tenho nada para lhe dar. Olho nos seus olhos, mas afasto-os logo a seguir. Não sei o que lhe dizer. Não sei o que ela espera que lhe diga. Queres que te diga que tive saudades tuas? Queres que te explique que te mantiveste como fantasma nos meus sonhos, nas minhas caminhadas solitárias? Por vezes achava que me acompanhavas, de longe. Quase indistinta, no horizonte. Como uma luz. Ou uma estrela longínqua. Queres que te diga que sonhei contigo milhares de vezes? E que acordei sempre tremendo de frio e não de prazer, porque tinhas ido embora e nunca esperei voltar a ver-te? Que te achei perdida para o mundo para sempre? Sei lá o que te dizer! Nem sei porque voltaste...Porque havia de te dizer como preciso de ti para voltar a viver? Mas tu insistias: - Gostas de me ter por cá? Diz-me! Gostas que tenha voltado?
- Acho...que sim. Acho que vamos ser bons colegas. Temos ideias comuns. Podemos ter um bom projecto.
E pronto! Acabei de estragar tudo. Vejo-o na forma como o teu olhar me deixou cair. Como te recostaste na cadeira a olhar novamente o mar. Mas não me pareces surpresa. Nem zangada. Nem desapontada. Deixaste, apenas, que o teu olhar me deixasse cair. E deixaste-me só. Porque, num segundo deixaste de estar ali e foste não sei para onde. Perdeste-te no horizonte. E apetece-me abanar-te, sacudir-te. Volta! Quero-te aqui! Preciso de ti aqui. Tens de me ajudar a dizer-te o que não sei! Não sirvo mesmo para estas coisas. Sinto-me retesado, dentro do meu corpo. Acho que continuo tremendamente ensopado em calor. Mas isso já não me incomoda. Incomoda-me a solidão em que me deixas. E, percebe, não gosto de estar só. Mas é assim, em solidão que me encontro todos os dias, todas as horas. Todas as noites. E quase me parece impossível poder ser de outra maneira. Por isso tens de voltar. E ficar. E ouvir para além das palavras que te sei dizer. Porque não te sei dizer mais.
- Queres mais um Gin?
- Não. Acho que não. Prefiro manter-me sóbria.
Pois eu preferia beber até cair. Sem vergonha que me visses para lá do decente. Podia ser que assim te dissesse...algumas coisas que trago atravessadas dentro de mim. E que não me deixam respirar. E que me fazem sentir, todos os dias, que morro um bocadinho.




- Não quero sair daqui sem ti.
- Não sairás. Não te deixo ir sem mim. Quando te levantares, eu seguirei os teus passos. Deixarei que me guies com o olhar e me leves um outro lado qualquer. Onde não haja gente barulhenta. Onde o calor deste fim de dia, não incomode mais. E quando te despir esse vestidinho minúsculo que trazes, vou poder finalmente ver-te. Toda. Vou passar as minhas mãos pela tua pele e cheirar-te. Quero que o teu perfume fique na minha alma. Para que nunca mais saia. Quero beijar-te, aos bocadinhos, com paciência. Para que fiques toda gravada em mim. E te reconheça ao centímetro de olhos fechados. És minha porque te carrego há uma década dentro de mim. És minha porque só eu te sei amar pelo que não és. Só eu sei querer-te mesmo quando me ignoras. És minha porque a paixão não tem limites e o meu corpo te pede. Mesmo quando não me queres. Mesmo quando amas outros corpos eu estou ao pé de ti. Esperando por um olhar. Por um sorriso. Esperando que me desejes. Independentemente do lugar para onde me levas, da dor que me provoques. Serei sempre teu, porque tu és minha. E não há nada que possas fazer em contrário. És minha porque nasci contigo no coração e porque fizeste despertar o meu desejo. E, desejo-te com o meu corpo, com a minha alma, com a minha carne, sedento. Aflito. És minha porque ninguém te vai amar tanto, ninguém mais poder ver este teu olhar de prazer. Serás sempre minha, mesmo quando me deixares na penumbra do quarto e saíres devagarinho para não me acordares. Serás minha porque nunca ninguém te amará tanto. Mas isso, tu ainda não sabes. E eu também ainda não sei se alguma vez o saberás. E não te vou contrariar. Um dia irás embora. Terás outros desejos. Farás amor com outros corpos. Terás prazer sem mim. Mas não será igual. Não será melhor. Mas deixo-te ir. Porque o amor não se obriga. O desejo não se contraria. Porque a memória não se apaga. Porque também tu terás sempre dentro de ti, a memória dos meus beijos, as marcas do meu desejo. E terás saudade, ou outra coisa qualquer. E voltarás para mim. Talvez muitas vezes. Talvez vezes demais. Mas eu saberei esperar por ti. Porque eu sei que és minha. És minha porque é no meu corpo que o teu repousa quando o mundo te vira as costas. És minha. E no entanto, nada farei para que venhas, para que fiques. Serás senhora do teu tempo, do teu mundo. Mesmo que esperar signifique sangrar. Mesmo que me doa a espera, mesmo que me arranques pedaços da alma ao ver-te com outros. Mesmo que o teu sorriso nem sempre me pertença.
Mais do que palavras, será sempre em silêncio que te direi que te amo...




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