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segunda-feira, outubro 13, 2003

Um quarto em Amsterdam - Náufraga

Penso muitas vezes em te escrever, em te voltar a ver. Na quietude dos meus dias, o perfume do teu rosto assalta-me vezes sem conta. Penso em ti e fico saudades...
Mas não me atrevo. Não devo atrever-me. Não sei como seria se te ligasse. Penso naquela noite em Amsterdão. Recordo o prazer e sorrio! Lá fora é noite e o céu tem uma imensa lua alaranjada e uma multidão de estrelas cintilantes. Sabes, fico horas a olhar o céu, recordando-te. Sei que não te devo ligar. Saí sem me despedir. Não te quis dizer adeus. Adeus deixa uma impressão profunda de que é para sempre. E eu quis deixar no ar a incerteza. Talvez não seja para sempre. E por isso deixei-te sereno, a dormir.
Talvez quando acordasses não sentisses a minha ausência. Mas, sentiste? Como gostava de saber. Se valeu a pena. Se não terá sido loucura, não lutar por ti. Mas...Não quis. Não é assim que quero ser amada. Pensei que ... talvez me quisesses.
Sofri, como se diz, um acidente. A culpa foi da chuva, dizem-me. Mas não sei se acredito. A chuva pode dar vida. A mim, dizem-me, tirou-me um bocadinho de vida.
Deixei-te dormindo. E estive numa paragem de autocarro, à espera. E chovia muito, muito. Tinha o corpo encharcado e frio. Muito frio. Tinha a alma gelada. As minhas lágrimas confundiam-se com as gotas de chuva. Torrenciais. Fiquei ali, à espera. Como quem espera um autocarro que nunca chega. Mas nunca vieste...E fui-me abandonando à dor. Deixei que me torturasse. Que me esventrasse a alma... Doeu tanto que pensei nunca superar. Nunca iria cicatrizar. Alguém me levantou do chão onde me deixei cair. E à chuva, me carregou nos braços para um lugar qualquer. Seguro. Aqueceu-me. Salvou-me de morrer. Mas não me deu a vida de novo. Continua aqui, à cabeceira, velando. Porque sabe que não estou curada. Tive de coser a minha alma de novo. Mas eram tantos os bocadinhos, tantos que não os soube juntar bem. Nunca fui boa a coser. Ficam sempre uns pontos mal dados. Uns pedaços mal remendados. E no fim, a peça não volta a ficar igual. E é assim, que me sinto. Remendada. Mas não igual. Mais pequena, talvez. Não cosi tudo. Pedaços houve que não tiveram conserto. Não os deitei fora. Guardei-os numa gaveta junto à minha cama. Estão lá. Quando morrer, levo-os comigo. Não vá pensarem que perdi um bocado da minha alma. Não senhor. Só que já não a visto. Inteira. Agora, aprendo a falar de novo. Mas não sei ainda andar. Tenho de aprender tudo. Ou o que conseguir. O que o tempo que me resta, me deixar. Porque o tempo manda. Muito mais do que os homens. É como um casaco que nos protege do frio, mas nos faz suar ao sol. Percebes? Estamos ali, enredados. Damos um passo e o caos, fecha-se logo atrás de nós. Não deixa uma brecha sequer. Nem um fiozinho de ar. Nem um espacinho, sequer. Não sei explicar melhor agora. Tenho febre. De tempos a tempos tenho febre. Antes não era assim. Mas antes, era diferente, também. Agora, fico muito cansada. Muito depressa. Custa-me respirar. Custa-me viver. Parece que me arrasto no tempo. Aqui deitada, as horas vão passando como se eu estivesse a enrolar novelos de lã. Mas o meu novelo, parece-me, não cresce. Vai diminuindo. E eu rendo-me ao cansaço... Acho que é por causa deste cansaço que não faz sentido o que digo. Dizem-me. E eu percebo que não me dão muito crédito, já. Mas, eu acho que é da febre. Acho que me vai consumindo...Me vai cansando...